sábado, 9 de janeiro de 2010

quinquagésimo quarto ~

Toda noite preparava o prato, sentava-me a mesa e esperava. No começo ele vinha com um sorriso, beijava-me e contava sobre o dia, perguntava do meu, brincava comigo e depois lavávamos a louça dançando ao som dos Beatles.
Alguns meses depois ele demorava a chegar, não sorria mais, não me contava das coisas, jogava a comida fora e ia deitar-se. Mal olhava em meus olhos, mal dirigia a palavra a mim, simplesmente olhava através de tudo. Nunca consegui entender o que aconteceu, será que tinha feito algo? Tinha eu o ofendido? O maltratei? O que tinha mudado?
No final, algumas noites ele simplesmente não chegava, noites a fio que esperei acordada para nada, chegava bêbado de madrugada, dizia coisas horríveis, fedia a álcool. Mudara, não era mais o homem que tinha me esperado no altar, não era o homem que me levava flores no trabalho. Não era ninguém para mim, e isso era recíproco.

A primeira vez que ele tocou em mim eu não acreditei. Dizia que o roxo no meu braço eu mesma tinha causado, tentava esconder dos outros. Pensei que nunca mais ia se repetir. No entanto as noites foram ficando iguais, e tendiam a piorar. Ele não descansava até ver lágrimas em meus olhos, e o sangue escorrendo pelo meu corpo.
Noites e noites a história era a mesma, mal tinha sarado um machucado, e ele não tardava em fazer outro. Não podia mais aguentar.
Uma noite, naquela noite, eu planejei tudo. Se ele tocasse em mim, eu tocaria nele da minha maneira. Afiei a faca, escondi embaixo da minha blusa e o esperei a noite toda. Ele não veio.
Quando notei, achei loucura toda a história de machucar meu próprio marido, não podia fazer isso. Guardei a faca na primeira gaveta na cozinha, e fui deitar-me, agradecendo por ter uma noite de sossego, podendo dormir sem precisar fazer curativo antes. Pensei que talvez ele tivesse desistido e ido embora. Um abandono é melhor que outro espancamento.
Na noite seguinte, no entanto, ele voltou mais violento do que nunca. Puxou-me pelo cabelo, me disse coisas horríveis, xingava-me de todos os nomes existentes. Aquela foi a única noite que eu temi por minha vida, jurava que seria minha última noite, mas não poderia ser assim. Não morreria nas mãos do homem da minha vida. No primeiro descuido, corri até a cozinha, peguei a faca e enfiei o mais forte que pude em suas costas.
Ele era forte, precisei de mais do que algumas facadas para derrubá-lo. Quando voltei a mim mesma, olhando o sangue em minhas mãos e o estrago que tinha feito em meu marido, fiquei assustada. Como eu poderia ter sido capaz de algo tão monstruoso? Corri até o banheiro para lavar-me, tirar o sangue de cima de mim. Logo após, liguei para a polícia.

E agora vocês do júri se encontram aqui, tentando dizer se fui culpada ou inocente. Tentando defender-me, eu me tornei o monstro, e agora já não posso mais me reconhecer. Nunca perdoar ou condenar-me-ei.
Entretanto digo a vocês que fiz o que fiz apenas por minha sobrevivência. Não nego isso. Peço apenas que vocês pensem, entre a vida de vocês e de um monstro qualquer, qual vida vocês escolheriam? Vocês matariam seu ideais para permanecerem vivos? Tornar-se-iam os monstros?

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